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ESAÚ E JACÓ, DE MACHADO DE ASSIS

Bloco 1/6

Prezadas quartières,


Nesse mês estaremos conversando sobre a obra mais complexa, por ser repleta de enigmas, segundos sentidos e injunções históricas. Ela é ao mesmo tempo, para mim, a mais apaixonante de Machado de Assis: “ESAÚ E JACÓ”.

E o papel de todo crítico ou analista é o de auxiliar as pessoas na leitura de obras de verdadeira relevância. É o que tentarei e espero ser bem sucedido.

“Esaú e Jacó” foi publicado em 1904. O autor logo avisa: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava ou parecia estar escondida.”

O romance começa em 1871 (ano da Lei do Ventre Livre), com uma grávida, cujo nome sugestivo é Natividade, esposa de um banqueiro, Santos, que fizera fortuna no boom do café. Ela sobe o Morro do Castelo, local onde a cidade do Rio foi fundada em 1557, a fim de consultar uma “vidente”, a cabocla chamada Bárbara, a respeito do destino dos gêmeos que carrega no ventre. A narrativa se estenderá até 1894, perpassando o esfacelamento do regime imperial, o golpe de estado que implanta a República, o golpe dentro do golpe dado por Floriano Peixoto. Era nosso país navegando de revolta em revolta sob as botas militares e repressão e assassinatos do grupo de turno no poder.

O nível de alegorias sobre este período conturbado de nossa História que a narrativa propicia, é precioso! Somente uma pequena fração delas será contemplada neste nosso estudo.

O Bruxo do Cosme Velho em “Esaú e Jacó” irá fundo na crítica à conformação política do país. Ao final do século XIX, ele já pressente que o Brasil é uma sociedade sem rumos, sem objetivos claros e correndo para a desintegração social.

A narrativa, em parte, se desenrola desde o ponto de vista do Conselheiro Aires, um diplomata aposentado. Este personagem que já encontramos no “Memorial de Aires”, é o retrato da camada mais preparada da elite brasileira: inteligente, calculista que, acima de tudo, evita o conflito dentro da própria como classe dominante. Aires adota sempre a postura de não confrontar-se em momento algum.



Bloco 2/6


Como decorrência, o narrador é volúvel nas opiniões e apegado às aparências de um intelectualismo liberal, sendo parceiro fiel do atraso no seio da sociedade escravocrata e exclusivista. “Aires tinha o coração inclinado a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia”.

A Proclamação da República propriamente dita é explicitada claramente no episódio da tabuleta de uma confeitaria. O português Custódio, proprietário doceiro, é vizinho de Aires. No diálogo a respeito da tabuleta, entre ironias e metáforas, a opinião do genial autor sobre a quartelada de 15 de Novembro é expressa. Custódio, depois de muita relutância, mandara repintar a tabuleta que levava o nome de sua loja: “Confeitaria do Império”. O pintor o avisa que “a tábua está velha e precisa outra, pois está rachada e comida de bichos”. A alusão à Monarquia é óbvia: um regime decadente, comprometido e sem sustentação, que não suporta mais nem uma reforma e tem que mudar.

O proprietário encomenda, então, uma nova tabuleta justamente no dia 15 de Novembro. Custódio manda urgente um bilhete para o pintor com o seguinte recado: “Pare a pintura no d.” Não sabia se era melhor concluir a mesma com a palavra "do Império" ou "da República", afinal, para que lado iria o barco?

A indecisão de Custódio apenas quanto ao nome é sintomática do país em que algo sempre muda para que se mantenha, na essência, tudo como estava. O Conselheiro o “aconselha” que escreva um nome neutro, serviria a uns e outros.

Machado de Assis, assim, compara a proclamação da República a uma simples troca de tabuletas, uma mudança de nomes. República e Império se equivalem como rótulos de fachada.

Um fator significativo a ressaltar é a maneira como, explorando as divergências políticas dentro da elite, ele nos transmite o sentido de que elas seriam apenas aparentes. As contradições reais estariam entre a elite e as outras classes sociais. Machado o realiza com o trato estético da questão no dualismo dos gêmeos falsamente contraditórios, o que não passa de aparências.


Bloco 3/6


A referência bíblica que empresta seu nome à obra “Esaú e Jacó”, nos traz gêmeos que brigam desde sua permanência no útero e que lutarão toda uma vida pelo reconhecimento materno-paterno e, principalmente, pela herança, jamais convivendo em harmonia.

“O que o berço dá só a cova tira, diz um velho adágio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever: ‘Dico, che quando l’anima mal nata...’” Estaria Machado nos falando da herança cultural da elite, transmitida desde o berço?

No romance Pedro, um dos gêmeos, advém de São Pedro, que na tradição bíblica se vincula ao conservadorismo; ele faz medicina, carreira que figura como conservadora na literatura da época e é um defensor da Monarquia. Paulo, o outro, remonta a São Paulo, faz direito, carreira tida como liberal e defende a mudança do regime para a República.

Mas, assinala Aires, os gêmeos se definem politicamente por razões triviais. “Não eram propriamente opiniões; não tinham raízes, nem grandes e nem pequenas”.

Com a proclamação da República, pressupõe-se que Pedro, sempre a favor da Monarquia, se tornaria um crítico do novo regime, e que Paulo passaria a defendê-lo. Mas não é o que ocorre. Aliás, este é um dos curtos períodos em que as brigas entre os irmãos são contidas, pois quando se trata de discutir algo próximo de ideias, noções de organização política, as diferenças entre ambos desaparecem.

Por isso, ao invés de caracterizá-los meramente como conservador e liberal, podemos usar as expressões situacionista e oposicionista, ou seja, os gêmeos não são idênticos apenas na aparência, a ponto de Flora (uma paixão de ambos) mal distingui-los; têm a mesma essência, apenas com revestimentos e discursos distintos.

O olhar crítico de Machado está aí: no Brasil não se consegue perceber a diferença entre monarquistas e republicanos — diferentes no discurso, mas semelhantes nas práticas políticas.

Machado mostra que o destino do homem permanece uma questão de “certa fé”, para a religião e para a própria ciência. E que o mesmo não deixa de ocorrer com a política. República ou Monarquia, a disputa entre ambas se transforma em mera questão partidária, de interesse de grupos políticos que são diferentes na aparência e representam, ao alternarem-se, mera troca de mãos alçadas ao poder.


Bloco 4/6


Falava Aires: “E lembrava-se do discurso do Senador Albuquerque que dizia não haver nada mais parecido com um liberal que um conservador e vice-versa”, e referindo-se aos políticos: “Não é a ocasião que faz o ladrão, o provérbio está errado. A ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito”.

Um pouco mais do enredo.

Natividade, esposa do banqueiro e futuro barão Santos, está grávida de gêmeos e decide, como tantas madames, visitar incógnita uma cabocla tida como “vidente”. A previsão da cabocla é animadora: “Serão grandes”! Ao chegar à casa, a mulher relata as previsões ao marido. O homem fica feliz, mas resolve procurar um amigo, mestre espírita, para saber sobre pontapés sentidos no ventre. O amigo o tranquiliza, afirmando que os meninos seriam grandes homens e por isso brigavam antes mesmo do nascimento. De todas as maneiras, tudo “seriam cousas futuras”.

A questão apresentada, ainda que de forma ironicamente branda, gira em torno de crenças. De forma sutil, o autor trata o conflito entre fé, ciência e religião, em voga no início do século. Na época, as descobertas da ciência experimental, o advento do materialismo e a redefinição do homem acabaram causando uma sensação de desencantamento e ceticismo quanto a religiões. “Aires negava que fosse incrédulo. Ao contrário, sendo tolerante, professava todas as crenças desse mundo”.

Pode-se inferir que, entre os espaços de crença (o barracão da cabocla e a Igreja) se coloque o espiritismo como tentativa de estabelecer alguma vinculação entre fé e ciência, o que pelo vazio das propostas é um objetivo inalcançável. A figura de Santos, banqueiro de sucesso no dia a dia, que demonstra ser crédulo e tosco quando as questões são de cunho espiritual, revelam a pobreza intelectual dos homens de negócio.

Pedro e Paulo crescem idênticos fisicamente, mas diferentes na personalidade. Paulo, médico e Pedro, advogado, sendo que ambos abdicam do exercício das profissões escolhidas. Preferem o flanar e a política: a sociedade brasileira, mesmo após a abolição da escravidão, permanece alicerçada no sinhô, na sinhá e nos que trabalham para servir, naturalmente negros, mulatos e agregados. Somente após a morte de Flora, os irmãos iniciarão seus ofícios.


Bloco 5/6

Os gêmeos encantam-se por Flora, filha de um político oportunista, Batista, ora conservador, ora liberal, na dependência do poder. Cláudia, sua esposa, lhe diz quando ele vacila: “Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha”. Comissionado pelos conservadores, quando os liberais assumem o poder, Claudia lhe diz: “Conservador, você? Sem saber, você sempre foi um liberalzão, somente não o sabia”.

A morte de Flora

Flora, antípoda da mãe Cláudia, revela um estado de inocência que o próprio nome nos trás. Inocência e abundância. “Flora não entendia de formas e nem de nomes. A sonata lhe trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência primitiva daquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediência.... Não haverá então progresso, nem regresso, mas estabilidade.” Uma estabilidade que somente se ganha com o túmulo.

Flora é, de certa forma, uma metonímia do Brasil: apesar de abundante, se confunde e definha, sem conseguir definir com qual Partido casar-se. Retira-se do Rio para Andaraí, mas nada debela seu mal. A moça, dividida entre os Partidos gêmeos, vem a falecer.

No contexto de fins de 1891, devido à revolta da Armada e possível guerra civil, Deodoro é forçado renunciar e, seu vice, o Marechal Floriano Peixoto, assume. Este se nega a cumprir a Constituição e em seu governo se alastra a repressão aos revoltosos. Com o objetivo de manter-se no poder, executou a política econômica denominada de ensilhamento, imprimindo dinheiro sem lastro, o que levou a uma enorme inflação, assim como à especulação econômica e ao surgimento de riquezas especulativas da noite para o dia.

Em decorrência, aumenta a revolta dentro das forças armadas e da população. As mortes se multiplicam. Com receio de bombardeio, a capital do país foi transferida para Petrópolis, em 1894. Nesse ano morre a jovem Flora, após dela também se haver apaixonado Nóbrega, um arrecadador de esmola que se dera inexplicavelmente bem na vida, de especulações não claramente explicadas.


Bloco 6/6 (FINAL)

Em um capítulo curto denominado de “Estado de sítio”, Aires descreve o funeral de Flora: “Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar?

Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista...”

Os irmãos sofrem com a morte de Flora, mas depois dão curso às suas carreiras e vidas. Para o Machado de “Esaú e Jacó” os amores escorrem e se perdem com a vida.

Com a morte da mãe, Natividade, e atendendo a um último pedido, cessam os desentendimentos entre os gêmeos. A paz estabelecida, entretanto, dura pouco; logo os irmãos voltam a se separarem, agora por uma questão de partição de heranças. Não se trata mais de discussões política, nesses tempos a discórdia é argentária, patrocinadora de “um ódio comum, o sentimento que mais liga duas pessoas”.

Quanto ao narrador, a respeito dos desmandos entre os homens e a situação de desmantelamento das instituições no Brasil, o narrador num retoque de sinceridade afirma que “tudo é possível abaixo do sol e da lua. A nossa felicidade é que morremos antes”.

“De todos os maus costumes, o de envelhecer é o pior. Deixa para lá filósofos dizerem que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças minha amiga, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre”, pois:

“Quando se envelhece os receios da morte crescem. Mas não bastam os receios, é preciso que a realidade venha atrás deles. Daí as esperanças. Mas também não bastam esperanças, pois a realidade é sempre urgente”.

Após esta nossa breve análise, convido-as todas à leitura da magnífica obra de nosso mais importante escritor, ESAÚ E JACÓ.



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