Os Sertões, de Euclides da Cunha
ARTS QA, POR CARLOS RUSSO
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Prezadas quartières, hoje nossa temática se baseia em uma epopeia: a epopeia do homem do sertão brasileiro nos princípios do século XX, vivida e descrita pelo gênio de Euclides da Cunha, em um dos clássicos magistrais de nossa literatura, um verdadeiro precursor do modernismo.
“Os Sertões”.
Euclides da Cunha aos dezenove anos, em 1885, tal qual ocorreu com Lima Barreto, deixou os estudos na Escola Politécnica por falta de dinheiro. Entrou para a Escola Militar da Praia Vermelha, justamente nos momentos da efervescência da questão militar. Republicano de alma, é expulso do Exército por rebeldia em 1888, por que atirara ao chão sua baioneta, em sinal de protesto contra a repressão a cadetes insubordinados.
Recebe, então, convite para escrever para o jornal “Província de S. Paulo”, atual “Estado de S. Paulo”, que pugnava pelo republicanismo dos ditos paulistas, representados por Júlio de Mesquita.
Com o pouco que ganha, retoma os estudos e gradua-se em Engenharia Civil.
Com a proclamação da República, em 1889, ele é saudado como “o estudante da baioneta” e reincorporado ao Exército. Em 1890, chega ao oficialato, no mesmo ano em que desposará Ana Ribeiro.
No entanto, desencanta-se com o Exército de Floriano Peixoto, no qual depositara tantas esperanças e reforma-se no posto de Capitão.
Estamos em 1896, e um líder místico de nome Antônio Conselheiro tornava-se uma lenda de resistência dos miseráveis dos sertões baianos.
Em 1897, “O Estado de S. Paulo” contrata o ex-Capitão como correspondente de uma “guerra do fim do mundo”, na expressão de Vargas Llosa.
Euclides chegará a Canudos às vésperas dos últimos dias de combate e de destruição do Arraial dos revoltosos. Produzirá, a partir desta rica experiência, uma série de reportagens. Somente deixará Canudos quatro dias antes do fim da guerra, não chegando a presenciar o desenlace. Mas o pesquisado, o presenciado, o vivido e o pressentido lhe permitiriam escrever e publicar, em 1902, uma das obras primas da literatura brasileira: “Os Sertões: campanha de Canudos”.
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“Os Sertões” se subdivide em três partes: a terra, o homem e a luta.
Euclides analisa as características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da região, a vida, os costumes e a religiosidade sertaneja no interior da Bahia e, por fim, narra os fatos ocorridos nas quatro expedições do Exército de Caxias, em três dos quais foi derrotado, e, afinal, o massacre do povo liderado por Antônio Conselheiro.
Mas o autor de “Os Sertões” foi muito além!
Interpretou as formas de consciência e de representação em uma comunidade que lhe era estranha, entrevista em meio aos combates e bombardeios, estando do outro lado da trincheira, do lado do agressor, do Exército. Desde esta perspectiva buscou esclarecer o mistério em torno de Canudos: ao relativizar muitas crenças, ditas sebastianistas, que tornavam inteligíveis alguns dos aspectos subterrâneos da guerra, como o apelo da mensagem de seu líder e a resistência heroica dos combatentes.
Euclides adotou também uma maneira historiográfica inovadora, um arranjo poético ao conflito, e o fruto disto tudo é uma obra híbrida, narrativa e ensaio, literatura e história. Lançou corajosamente um olhar irônico sobre suas próprias crenças para compreender o horror da guerra, e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular.
O sentido epopeico da jovem República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu um caráter bárbaro e de tragédia que foi o massacre militar que ele testemunhou.
"Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo".
O sertão nordestino era uma terra de latifúndios improdutivos, de secas cíclicas e desemprego crônico. Milhares de sertanejos famintos partiram para Canudos, cidadela liderada pelo peregrino Antônio Conselheiro, unidos na crença de uma salvação de corpos e de almas. Chegando ao arraial, organizavam-se como podiam e conseguiam sobreviver na solidariedade e em suas crenças de salvação espiritual.
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A atitude de rebeldia e a capacidade de sobrevivência demonstrada por eles eram um péssimo exemplo que os coronéis nordestinos e sua aliada da época, a Igreja Católica do sertão, não poderiam permitir que se disseminasse.
Estes pressionaram a República exigindo o aniquilamento do movimento. Criaram factoides, “fake News” que a imprensa reproduzia: “Canudos se armava para atacar cidades vizinhas e partir em direção à capital para depor o governo republicano e reinstalar a Monarquia”
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Antes da denúncia de “Os Sertões”, Machado de Assis já havia escrito sobre Canudos na Gazeta de Notícias. Em crônica de julho de 1894, comparava os seguidores do Conselheiro aos piratas das canções românticas de Victor Hugo. Machado deixava-se encantar pelo toque de poesia e mistério que envolvia o líder religioso Antônio Conselheiro, além de criticar a imprecisão das notícias sobre o movimento.
Quando a guerra contra os famintos foi desencadeada, Machado protestou. Comentava que pouco se sabia sobre a seita e doutrina de Conselheiro, capazes de mobilizar milhares de seguidores: "De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos." Como as mortes nos combates não afastaram os fiéis de seu líder, perguntava-se: "Que vínculo é esse [...] que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?"
Reportagens de Canudos
Euclides observou que o combate apresentava uma "feição primitiva, incompreensível, misteriosa." Surpreendia-se que os jagunços, já em número reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco da cidade, em vez de fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação.
(Continua na próxima semana)
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